A Liturgia das Horas
e a Eucaristia
Pe. José Inácio Schuster
Há muito tempo, tanto a Eucaristia como a Liturgia das Horas foram chamadas sacrificium laudis, sacrifício de louvor.
"Te oferecerei um sacrifício de louvor, invocando teu nome, Senhor" (Sl 115,8). Desde antigamente, tanto a Eucaristia como a Liturgia das Horas foram chamadas sacrificium laudis, sacrifício de louvor, pois uma e outra tem na ação de graças e na atitude oblativa do louvor sua dimensão primária. Uma e outra, em cada féria, memória ou festa do Ano litúrgico, se unem intimamente na celebração de um mesmo mistério, e assim confluem em perfeita coincidência seus elementos bíblicos, orantes e espirituais. A Eucaristia e as Horas são assim as duas áureas coordenadas nas que se desenvolve dia a dia a vida do povo de Deus. Durante muitos séculos, as Horas litúrgicas, especialmente a matutina e a vespertina, foram as únicas celebrações cotidianas e comunitárias da Igreja local, enquanto que se reservava a assembléia eucarística para o domingo, as festividades, e certas férias de Quaresma e Têmporas. Agora, quando celebramos a Missa cada dia, a Eucaristia segue encontrando na Liturgia das Horas, como antes, seu perfeito antecedente e conseqüente diário. Assim os expressava Paulo VI: "A Liturgia das Horas se desenvolveu pouco a pouco até converter-se em oração da Igreja local, na que, em tempos e lugares estabelecidos, baixo a presidência do sacerdote, se convertia em um complemento necessário para que todo o culto divino contido no sacrifício eucarístico influísse e chegasse a todas as partes da vida dos homens" (Constituição Apostólica Laudis canticum).
1. O Mistério Pascal e a Liturgia das Horas.
"A obra da redenção humana e da perfeita glorificação de Deus, preparada pelas maravilhas que Deus obrou no povo da Antiga Aliança, Cristo o Senhor a realizou principalmente pelo mistério pascal de sua bem-aventurada paixão, ressurreição dentre os mortos e gloriosa ascensão" (SC 5). A Páscoa contém, pois, tudo o que Deus fez para salvar o homem e restaurar na terra sua glória: primeiro foi, no Antigo Testamento, profecia ou anúncio; depois foi cumprimento em Cristo; e agora, na Igreja, se celebra em mistério, baixo os véus sagrados da liturgia. A paixão e morte de Jesus, sua ressurreição e a ascensão aos céus, esse é o Mistério Pascal, do que dia a dia vive a Igreja.
Por isso "a Igreja não deixou nunca de reunir-se para celebrar o Mistério Pascal, lendo quanto a Ele se refere em toda a Escritura, celebrando a Eucaristia, na qual se faz novo presente a vitória e o triunfo de sua morte, e dando graças a Deus [às Horas] pelo dom inefável em Cristo Jesus, para louvar sua glória pela força do Espírito" (SC 6).
O Mistério Pascal é a fonte e o cume de toda a vida cristã. É daí de onde flui toda vida cristã, pessoal e comunitária; e é aí onde encontra a existência cristã a plenitude de sua força e expressão. Neste sentido a Igreja diz que a Eucaristia (LG 11), e em geral toda a liturgia (SC 10), é fonte e cume da vida em Cristo.
Na Eucaristia se produz sem dúvida a atualização suprema do Mistério Pascal, a mais expressa, a que tem maior força cultual e santificante. Nela se faz presente e se representa a Páscoa do Senhor, sua morte e ressurreição. Nela Cristo morre realmente e verdadeiramente ressuscita, pois aquele único acontecimento sucedido faz vinte séculos, escapando a suas coordenadas espaciais e temporais, pela sagrada liturgia se faz agora de todo real in mysterio, quer dizer, no sacramento. A diferença fundamental é que agora Cristo, que se ofereceu sozinho ao Pai na cruz, se oferece agora no altar com todo seu Corpo eclesial.
Mas o sacrifício Eucarístico não é o único modo de representar e atualizar o Mistério Pascal, e a liturgia o sabe perfeitamente. No batismo e nos demais sacramentos não está a Igreja atualizando toda a potência cultual e santificante da morte e da ressurreição do Senhor? Na Liturgia das Horas, igualmente, é Cristo que, esta vez com sua Igreja, segue orando as grandiosas orações de sua Páscoa. Como na Ceia, segue recitando com seus discípulos os hinos e salmos, e prossegue sua grandiosa oração sacerdotal ao Pai, poderosa na glorificação de Deus e na intercessão pelos homens. Como no Getsêmani, continua orando com formidáveis clamores e lágrimas. Como na Cruz, como na ressurreição e ascensão aos céus... É o mesmo Cristo, o que nas Horas, através dos membros de seu Corpo, segue orando com palavras humanas. É Ele quem faz de seus fiéis instrumentos vivos de sua própria voz, e com eles glorifica ao Pai e suplica pelos homens (+OGLH 6; SC 83). E assim a Igreja no Ofício Divino atualiza o Mistério Pascal de Jesus Cristo, e não de uma maneira puramente evocativa ou espiritual, senão simbólica e sacramental.
2. A Eucaristia e a Liturgia das Horas são sacrifício de louvor
Sacrifício de louvor é uma profunda expressão bíblica (Sl 115, 13), cujo significado vale a pena meditar. As religiões naturais, em seus sacrifícios, fazem à divindade a oferenda de alguma criatura, para expressar assim a adoração, e obter determinados benefícios. Na Bíblia, pelo contrário, ainda que também existe o sacrifício ritual, o sacrifício primário é interior e espiritual: é o cumprimento da Lei divina, é a entrega incondicional da própria vontade, não de uma vítima substitutiva (Sl 50, 18; 49, 8-14; 39, 7). É também o sincero arrependimento pelos pecados: "Meu sacrifício é um espírito quebrantado, um coração quebrantado e humilhado tu não desprezas" (Sl 50, 19). Isto aprendeu Israel no exílio, na Babilônia, longe de Sião, quando não tinha nem sacerdote nem altar (Dn 3, 29-45).
No sacerdócio da Nova Aliança se expressa plenamente essa interioridade espiritual do sacrifício, que, por outra parte, não exclui o sacrifício ritual e corporal. Em Cristo é o mesmo sacerdote o que se oferece como vítima, em espírito e corpo -é o tema da Carta aos Hebreus-. E a verdade interior dessa preciosa oferenda, chamada a manifestar-se e a revelar-se em sinais certos, não só foi manifestada por Cristo em sua vida, sempre oferecida na fidelidade ao Pai, ou em sua cruz, onde se consuma a oferenda, senão também em sua oração. Com efeito, a oração sacerdotal de Cristo é verdadeiramente um sinal manifestativo, e não substitutivo, de seu espírito e vontade.
Portanto, a oração de Cristo é um verdadeiro sacrifício de louvor: "Suba para ti, Senhor, minha oração como incenso em tua presença, o levantar das mãos como oferenda da tarde" (Sl 140, 2; +Ex 29, 39; 30, 8). A oração de Jesus não será substituição do sacrifício, senão seu momento expressivo mais sublime. Recordemos, se não, as orações da Ceia, do Horto, da Cruz (Mt 25, 46s; 26, 39s; Jo 17, 1.5.17-19; Hb 5, 7; 9, 28; 10, 5-10; etc.). Estas orações são um verdadeiro sacrifício, não cruento ou material, senão espiritual, que Cristo faz de si mesmo para glória do Pai e salvação dos homens.
Pois bem, se a Igreja na Eucaristia diz ao Senhor: "te oferecemos, e eles mesmos te oferecem, este sacrifício de louvor, a ti, eterno Deus, vivo e verdadeiro" (Cânon Romano), ela mesma prolonga essa oferenda no Ofício Divino, unida a Cristo sacerdote: "Por meio dele oferecemos a Deus o sacrifício de louvor, isto é, o fruto de nossos lábios que bendizem seu nome" (Hb 13, 15; +Sl 115, 13; Os 14, 3; Jr 33, 11).
3. A Liturgia das Horas, anamnese da salvação
"A Liturgia das Horas estende aos distintos momentos do dia a recordação dos mistérios da salvação" (OGLH 12). É, pois, uma anamnese, continuação da que tem lugar na Eucaristia para dar cumprimento a vontade do Senhor: "Fazei isto em memória de mim" (Lc 22, 19; 1Cor 11, 24-25). O Ofício Divino é deste modo uma oração que expande a eficácia salvadora encerrada na Eucaristia, pois estende aos distintos momentos do dia não só a recordação do sacrifício do Redentor, senão também a oração mesma com a que ele se consagrou como vítima oferendada. E assim pode dizer-se que a Eucaristia é a pedra preciosa encrostada no anel de uma oração mais ampla, em cujo círculo constante se atualizam continuamente os distintos momentos da história salutar de Jesus.
4. A Liturgia das Horas, preparação para a Eucaristia
Toda a liturgia é uma permanente catequese espiritual, que educa ao crente e as comunidades cristãs na fé, que suscita as atitudes e disposições espirituais verdadeiramente cristãs, e que estimula a participação profunda nos divinos mistérios. Seus sinais são sacramentos da fé (SC 59), e não só iluminam aos fiéis em seu plano intelectual, senão que vão também configurando seus afetos, sentimentos e emoções (33-34).
Também a Liturgia das Horas, como não podia ser menos, é uma didascalia contínua de vida cristã, e ao mesmo tempo que é uma perfeita escola de oração, é sem dúvida a melhor preparação para a celebração Eucarística:
"A celebração Eucarística encontra uma preparação magnífica na Liturgia das Horas, já que esta suscita e acrescenta muito bem as disposições que são necessárias para celebrar a Eucaristia, como a fé, a esperança, a caridade, a devoção e o espírito de sacrifício" (OGLH 12).
Todas as Horas litúrgicas, como vimos, são eucarísticas, mas particularmente a hora das Vésperas, por sua coincidência com o momento em que Cristo instituiu o verdadeiro e único sacrifício da Nova Aliança (+OGLH 39).
A união de algumas horas do Ofício com a Missa, tal como está prevista (OGLH 94-99) expressa também em forma eloqüente o nexo profundo que existe entre a Eucaristia e a Liturgia das Horas. É uma união celebrativa que está prevista para casos particulares, não como una forma litúrgica habitual -ainda que às vezes se converteu nisto-. A OGLH assinala como únicas condições para tal união que a Missa e a Hora sejam do mesmo ofício litúrgico, e que isso não vá em detrimento da utilidade pastoral, "sobretudo no domingo" (93). Com efeito, a celebração por separado costuma ser no domingo mais conveniente, pois celebrando nesse dia as Laudes e as Vésperas com sua forma plena, pode assim o povo cristão participar nas duas Horas litúrgicas principais, tal como a Igreja o deseja (+SC 89a;100; OGLH 40).
5. A Liturgia das Horas, prolongação do Sacrifício Eucarístico
"A Liturgia das Horas estende aos distintos momentos do dia o louvor e a ação de graças, assim como a recordação dos mistérios da salvação, as súplicas e o gosto antecipado da glória celeste, que se nos oferecem no mistério Eucarístico, "centro e cume de toda a vida da comunidade cristã" (CD 30)" (OGLH 12). Deste modo, pelo Ofício Divino, todas as horas do dia se fazem eucarísticas, e a ação de graças da Missa, conforme ao afirmado nos prefácios, se oferece ao Pai "sempre e em todo lugar".
Nesta perspectiva, o Ofício Divino aparece como uma ação eminentemente sacerdotal, a que estão chamados não só os presbíteros, senão todo o povo de Deus, cuja identidade sacerdotal vem já determinada por sua incorporação batismal a Cristo sacerdote. E assim se cumpre também o que a III Oração Eucarística pede a Deus: que sejamos transformados em "oferenda permanente". Com efeito, "a função sacerdotal [de Cristo] se prolonga através da Igreja, que sem cessar louva ao Senhor e intercede pela salvação de todo o mundo, não só celebrando a Eucaristia, senão também de outras maneiras, principalmente recitando o Ofício Divino" (SC 83).
Já vimos como no Judaísmo os levitas, ao começar o sacrifício matutino e o vespertino, faziam soar suas trombetas, convidando ao povo a recolher-se na oração, para que a oração fizesse grato a Deus o sacrifício. Pois bem, também a Igreja é consciente da profunda vinculação existente entre a Eucaristia e as Horas. Pelo Oficio Divino, como na Eucaristia, mas esta vez em forma de oração, se atualiza a oferenda de Cristo ao Pai para a salvação do mundo, quer dizer, se continua, e assim se faz presente baixo a ação do Espírito Santo, a oração sacerdotal de Cristo ao Pai.
http://www.cnd.org.br/art/schuster/liturgiadashoras.asp